Por: Carmelita Pires
A República da Guiné-Bissau é um ESTADO DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONALMENTE INSTITUÍDA, fundado na unidade nacional, na efetiva participação popular e no desempenho, controle e direção das atividades públicas orientado para a construção de uma sociedade livre e justa (art. 3.º da Constituição da República – CR). Afirmando-se normativamente como um Estado de direito democrático, possui expressamente consagrados os princípios da constitucionalidade, da legalidade democrática e da separação dos poderes (art. 8.º e 59.º da CR).
A Guiné-Bissau, como Estado soberano, tem o compromisso de promover e proteger os direitos humanos, conforme estabelecido na Constituição da República e em tratados internacionais que ratificou. Contudo, o país enfrenta desafios significativos relacionados com a consolidação do Estado de direito democrático e a garantia efetiva dos direitos fundamentais por este consagrados.
País caracterizado pela instabilidade político-institucional crónica, vive hoje o pior momento da sua história: na luta pelo poder e sua manutenção, nunca foi tão evidente e abusiva a usurpação e concentração dos poderes do Estado. O Estado guineense foi cerceado por omnipotentes “ordens superiores” à revelia da Lei e da Constituição, totalmente patrimonializado e, em seu nome, estão a ser cometidas arbitrariedades extravasando claramente do autoritarismo para o totalitarismo.
AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS foram CAPTURADAS, USURPADAS E SUBVERTIDAS, com a manipulação formal do sistema judiciário, legislativo, executivo e eleitoral para garantir a perpetuação no poder. Todos os poderes do Estado se encontram submetidos à figura do Presidente da República. Os ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO PÚBLICA SÃO MANIFESTAMENTE CONTROLADOS, mera propaganda de visão única pró poder, demonização dos opositores e culto de personalidade do Presidente da República, onde o contraditório e o pluralismo de opiniões se tornaram letra morta.
Em simultâneo, assiste-se à rápida EROSÃO DAS LIBERDADES CIVIS: direitos como liberdade de expressão, de opinião, de imprensa, de manifestação, de reunião e de oposição política, são regularmente violados, numa clara e assumida postura de intolerância para com a dissidência e destinada a amedrontar a sociedade, no geral.
Assistimos a um AUMENTO DESCOMUNAL DA REPRESSÃO, VIOLÊNCIA E VIGILÂNCIA: através do uso de forças de segurança não identificadas ou milícias para monitorizar, intimidar ou silenciar opositores e vozes críticas. Em nome do Estado, vêm-se cometendo crimes hediondos, públicos, flagrantes e continuados: sequestros, prisões arbitrárias por tempo indeterminado, maus tratos, tortura de opositores, entre outros, numa traumatizante interferência na esfera privada e das liberdades individuais, contra todos os direitos e garantias estabelecidos, submetendo assim a sociedade a uma inaudita violência moral, potencialmente geradora de fortes tensões com desenlace imprevisível, perante total indiferença da Procuradoria da República.
Esta maléfica apropriação do Estado e das suas instituições, consubstancia-se numa deriva totalitária dissimulando ATIVIDADES DE CRIMINALIDADE ORGANIZADA. Enquanto o Procurador-Geral da República (demitido, acusado por alguns de narcotráfico, foi reconduzido) se reduz ao silêncio, silencia-se também, na medida do possível, a polícia judiciaria, com competência exclusiva no combate à criminalidade organizada.
O enquadramento jurídico-constitucional da situação política na República da Guiné-Bissau conduz-nos à conclusão da ilegitimidade formal e objetiva de todos os actos do Presidente pós caducidade de mandato. Consequências advindas diretamente dos parâmetros constitucionais, não podendo sequer fixar a data das eleições do Presidente da República e dos deputados à Assembleia Nacional Popular, nos termos da lei (art. 68°, al. f).
CORROÍDO O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NAS SUAS ENTRANHAS, todos os seus princípios foram grosseiramente violados: supremacia da lei, divisão de poderes, participação popular, proteção dos direitos e liberdades e imparcialidade do sistema jurídico. Foram concomitantemente SUBVERTIDOS OS DIREITOS HUMANOS: direitos civis e políticos; direitos económicos, sociais e culturais; direitos coletivos ao desenvolvimento e à paz.
Como falar de direitos humanos, quando são difundidos áudios e vídeos, para intimidar as pessoas, reveladores de tortura e maus tratos a cidadãos, particularmente os opositores ao status quo de intimidação? Só não vê quem não quer! Quais direitos humanos? Existem, é verdade. Mas e depois? A quem recorrer? À Comunidade Internacional? Na posse de factos e dados que lhe permitem avaliar as dimensões dos grosseiros golpes na ordem constitucional da República da Guiné-Bissau, e do que foi feito? Ainda não se constatou qualquer reação relevante à expulsão da delegação da CEDEAO. Não deveria haver um estigma forte de censura e de pressão, ao menos moral?
Esta deriva de poder totalitário mantém tudo e todos reféns, desconstruiu e esvaziou o Estado de direito. Que resiliência sobra ao povo guineense, já de si paciente, por natureza, quando se aproveitam e abusam da cultura do “DJITU KA TEM”, intrínseco à cultura guineense de não reclamar?
No contexto, tem sobejado a frágil SOCIEDADE CIVIL E A DIÁSPORA GUINEENSE, hoje espalhada por todos os cantos do mundo. Efetivamente, num cenário complicadíssimo, de impotência total, em que o que era base intocável do Estado foi posto em causa descaradamente, em que não se pode reclamar, tenta-se desempenhar um papel na consciencialização para os riscos e perigos latentes e iminentes, sabendo-se que tudo pode descambar ou arrebentar amanhã.
É difícil sair desta situação!
Não obstante, todos (as) estamos moral e inteletualmente obrigados (as) a resistir e a contrariar esta deriva totalitária do regime. Os atuais DESAFIOS DE RESILIÊNCIA são de todos e de todas, na defesa das conquistas democráticas. Diante da injustiça acumulada e o sentimento de impotência perante a situação, é previsível a acumulação de ressentimentos, dando origem a uma raiva surda, rastilho de todas as revoltas.
Em conclusão: ESTAMOS OBRIGADOS (AS) A RECUPERAR O ESTADO DE DIREITO, como alicerce necessário para que os direitos humanos sejam efetivamente protegidos e promovidos, garantindo que as leis sejam justas e aplicadas igualmente a toda a gente, e criando as condições para uma sociedade em que a dignidade humana, a liberdade e a justiça prevaleçam.
Nota: Ao ler o título da e-global (https://e-global.pt/noticias/lusofonia/guine-bissau/ongs-contra-deriva-autoritaria/) lembrei-me do texto que escrevi para a Revista da Liga em 18/03/2025, o qual aqui publico e que já deveria ter saído, não fosse a força das circunstâncias. A e-global fala em "deriva" autoritária; contudo o meu texto vai mais longe, ao falar em deriva totalitária. Qual a diferença? Avalie. Visto que não resisto a partilhar o texto, dando conhecimento ao Presidente da Liga, e oferecendo como contrapartida artigo atualizado a tempo de a revista ir para o prelo.