Por: Prof. Dr.
Emílio Kafft Kosta
Mergulhado num Retiro de Meditação, algures em Portugal, desde o dia 30 de Novembro, sem TV, rádio e telemóvel, acordei, na madrugada de 1 de Dezembro, no meio de um sonho (o 2.º, desde a madrugada de 3 de Novembro, que revelei a alguns familiares) que metia atiradores, tiroteio e traidores, em Bissau.
Desobedecendo à minha regra de isolamento, liguei o telemóvel e a Internet, para falar com familiares e eis que vejo nas redes sociais que tiroteios persistentes estavam a ocorrer em Bissau.
Pus-me a ler as notícias e descobri a seguinte narrativa:
1. Dois membros do Governo tinham sido ouvidos pelo Ministério Público (MP), por terem aqueles encetado diligências junto a um banco, no sentido de serem pagas a privados dívidas que o Estado contraíra com eles. Receberam, então, ordem de detenção nas celas da Polícia Judiciária (PJ);
Criticava-se nas redes sociais e na comunicação social a decisão do MP, por ser desproporcionada, ilegal, encomendada e com a intenção de calar os governantes, para que não divulgassem na anunciada Comissão Especializada do Parlamento operações financeiras ilegais que o governo anterior - formado e apoiado pelo Presidente da República em funções, Úmaro Sissoco Embaló - executou. O Ministro das Finanças, durante a sua audição parlamentar, recusara-se firmemente a divulgar a lista de indivíduos e outras entidades que receberam do Governo anterior pagamentos (questionáveis legalmente, subentende-se), para não criar, nomeadamente, instabilidade... Tentou, ingenuamente, evitar o inevitável.
2. Um grupo de homens armados afectos, dizia-se, à Guarda Nacional, teria depois entrado na PJ e retirado os dois governantes.
3. Homens armados (da Presidência da República, no 1.° assalto, com o reforço posterior de militares das Forças Armadas, dizia-se) atacaram as instalações da Guarda Nacional. Noticiou-se a morte e ferimento de vários contendores, a detenção do Comandante da GN e a retirada das instalações da GN dos referidos membros de Governo, reconduzidos às celas da PJ.
4. Há dias, recordo, pessoas armadas (afectas, denunciaram alguns, à Presidência da República - mas nem o Governo, nem o EMG das Forças Armadas, nem qualquer outra entidade deram esclarecimentos sobre o episódio) invadiram o Supremo Tribunal de Justiça, impediram o seu Presidente de sair de casa, forçaram a instalação do Vice-Presidente como Presidente do STJ, que promoveria o afastamento de Juízes Conselheiros e outros e a nomeação ou promoção de certos indivíduos. Registe-se que o próprio processo eleitoral à luz do qual estas 2 figuras tomaram a direcção do STJ, em 10 de Dezembro de 2021, fora no país vivamente questionado, na sua legalidade.
5. A tensão teve um epílogo:
Em 4 de Dezembro último, é divulgado o Decreto Presidencial de dissolução do Parlamento, órgão onde a Coligação PAI-TR, agregando o PRS e o PTG, asseguram 2/3 dos assentos. Na mesma data, é anunciada a acumulação (mais uma inconstitucionalidade) pelo PR das funções de Ministro das Forças Armadas e do Interior e que o Governo da Coligação PAI-TR se manteria como de gestão, acumulando o Primeiro-Ministro as funções de Ministro das Finanças e Secretário de Estado do Tesouro (Ver Comunicado do Conselho de Ministros de 4.12.2023).
6. Como analisar este Decreto Presidencial?
7. A Premissa Maior deste caso reside em, pelo menos, 3 preceitos constitucionais:
a) Artigo 59, n.° 2 da Constituição - «A organização do poder político baseia-se na SEPARAÇÃO e interdependência dos órgãos de soberania e na SUBORDINAÇÃO de todos eles à CONSTITUIÇÃO»;
b) Artigo 94, n.° 1 - «A Assembleia Nacional Popular NÃO PODE SER DISSOLVIDA NOS DOZE MESES POSTERIORES À SUA ELEIÇÃO (...)».
c) Artigo 8.° n.° 1 e 2 (princípio da constitucionalidade) – O Estado SUBORDINA-SE à CONSTITUIÇÃO; «A VALIDADE das leis e DOS demais ACTOS do ESTADO (...) DEPENDE da sua CONFORMIDADE COM a CONSTITUIÇÃO».
8. Ora,
a) O Decreto Presidencial n.° 55 de 4-12-2023 determina que «É dissolvida a ANP da XI Legislatura», com a alegação de «tentativa de golpe de Estado» revelada por esta acção da «Guarda Nacional», com «indícios de cumplicidade de políticos» e que se tornou «insustentável o normal funcionamento das instituições da República».
O único motivo ligado ao Parlamento é que:
«no recente debate parlamentar sobre o desvio de fundos públicos, a ANP, em vez de pugnar pela aplicação rigorosa da Lei de Execução Orçamental e exercer o seu poder de fiscalização dos atos do Governo, preferiu sair em defesa dos membros do Executivo suspeitos de envolvimento na prática de atos de corrupção que lesaram gravemente os superiores interesses do Estado»;
b) As eleições legislativas aconteceram a 4 de Junho de 2023 (há 6 meses) e os Deputados tomaram posse em 27 de Julho de 2023 (há 4 meses).
9. Logo,
Conclui-se:
9.1. O Decreto Presidencial viola, insustentavelmente:
a) O princípio da separação de poderes (do art. 59, n.° 2 da Constituição);
b) O limite temporal de dissolução do Parlamento (do art. 94, n.° 1), que proíbe, taxativamente, a dissolução do Parlamento nos 12 meses posteriores à sua eleição;
c) O princípio da constitucionalidade (do art. 8.º), que subordina os órgãos do Estado à Constituição e faz depender a validade dos seus actos ao respeito pela Lei Fundamental.
9.2. Consequentemente, o Decreto Presidencial n.° 55 de 4-12-2023 é inconstitucional e juridicamente INEXISTENTE (mais grave do que nulo).
10. Com um poder judicial e as instituições judiciárias independentes, fortes, limpos, credíveis e competentes, o julgamento deste atropelo à Constituição, à Democracia e ao Estado de Direito teria chances de existir e de ser respeitável, mas não é o caso, hoje e de há muitos anos.
11. O Poder Militar demonstrou, mais uma vez, que é, há ¼ de século, pelo menos, o detentor do Poder Real no país. Os aparentes donos do poder sempre o souberam…
12. A vez e a voz pertencem aos Políticos e aos demais Cidadãos amantes da Guiné-Bissau. Não se culpe eternamente a “Comunidade Internacional” pela “nossa” tolerância endémica a desvios ditatoriais. A “Comunidade Internacional” está cansada da ineficiência, disfunção, desorientação, incoerência, inconsequência e narcocracia da Guiné. Nunca é tarde para, corajosamente, lutar pela Democracia, pela Legalidade, pelo Estado de Direito e pelos Direitos Fundamentais. Não com um pé na Canoa dos citados valores e outro pé na Canoa dos inimigos desses valores… Façamos o nosso dever, internamente. Com coerência, coragem e sem vacilações, lutemos pela Refundação do Estado e da Constituição.