De retóricas como "combate ao terrorismo" para manter estruturas militares na região e até uso de instituições, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) para intervir economicamente nos países, mesmo décadas após a independência, as antigas "metrópoles" europeias ainda impõem nos dias de hoje o neocolonialismo no continente africano.
Após séculos de colonização, que usurpou desde riquezas naturais até a rica manifestação cultural de seus povos, os países africanos iniciaram os processos de independência há cerca de 80 anos. Mesmo assim, em muitos países eles foram conduzidos por elites ligadas a "metrópoles" e, com isso, mantiveram estruturas de subordinação à Europa.
Para o doutorando e mestre em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Vinicius Zanchin Baldissera, entrevistado pelo Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, a região tem a possibilidade de desenvolvimento "saqueada" até os dias atuais.
"Do colonialismo para o imperialismo e, agora, no neocolonialismo, a África teve seus recursos naturais extraídos para formar o desenvolvimento dessas potências do centro do sistema internacional, principalmente França e Reino Unido, mas também outros Estados em menor escala, como Portugal, Itália, Alemanha e Bélgica. Além disso, as populações africanas foram movidas para outros continentes à força para trabalhar em condições de escravidão, e isso moldou como os Estados africanos foram desenvolvidos ou subdesenvolvidos a partir de então", resume.
Conforme o especialista, muitos países africanos se formaram sob a lógica da dependência externa e toda a infraestrutura desenvolvida para atender exclusivamente aos interesses econômicos da Europa. "Por isso, as elites que assumiram esses Estados após a independência, alguns deles com guerra de libertação, outros com independência por negociação, precisaram pensar em formas de sustentar um Estado recém-criado sem uma liderança consensual com vários povos dentro do seu território e sem uma estrutura econômica para poder sustentar essa população", acrescenta.
Diante das dificuldades, as potências da Europa também passaram a aproveitar essas fragilidades para manter os laços de dependência das nações africanas. "São Estados criados recentemente com um sistema econômico voltado totalmente para fora, muitas vezes sem nenhuma conexão com os países vizinhos, o que dificulta a possibilidade de integração regional", destaca.
Outro ponto citado pelo especialista é, ainda, a atuação de entidades, como o FMI e o Banco Mundial, que dão suporte financeiro a países em crise sob fortes condicionantes, como "liberalização de mercados, austeridade fiscal e um pacote de intervenções" que atrapalham qualquer desenvolvimento autônomo. Como exemplo, Zanchin cita o uso do franco como moeda oficial em oito países da África Ocidental: Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo. "É uma moeda emitida pelo banco controlado pela França, que ainda preserva muita influência na região até os dias de hoje", diz.
Combate ao terrorismo é 'desculpa' para manutenção do domínio militar na região?
Recentemente, o presidente da França, Emmanuel Macron, afirmou publicamente que o país europeu ajuda a combater o terrorismo na África e, por isso, as nações da região deveriam "agradecer". Para o especialista, essa fala corrobora justamente as novas formas de neocolonialismo e ainda demonstra que a tentativa de dominação europeia, mesmo com o enfraquecimento do continente nos últimos anos, segue em vigor.
"Isso é algo que está tão enraizado na cultura europeia que não enxergam essa dominação justamente por utilizarem tantas retóricas para tentar negar esse processo. É o caso desse combate ao terrorismo para justificar suas intervenções militares, inclusive com a participação de tropas francesas para inspecionar regiões na África, como Mali e Ruanda", enfatiza.
O pesquisador lembra que um dos exemplos mais memoráveis sobre os impactos da colonização africana é o Congo, que teve um dos processos mais devastadores do continente.
"É um caso bastante particular, porque o Congo era praticamente todo uma propriedade particular do rei Leopoldo II da Bélgica. Não havia distinção entre público e privado, mesmo para a metrópole. E, hoje, é um país com uma das maiores populações do continente africano, cuja capital tem mais de 13 milhões de habitantes, e segue lutando para conseguir se desenvolver economicamente", cita.
Museus europeus e artefatos africanos expostos como 'troféus de guerra'
Para além da exploração de recursos naturais e da população africana, os séculos de colonização europeia, principalmente após a Conferência de Berlim em 1884, também levaram do continente artefatos sagrados e obras de arte que contam a história do próprio povo. É o caso do Benin, que, conforme estimativas, perdeu mais de 3 mil peças, que estão expostas em museus de vários países europeus como se fossem "troféus de guerra", explica ao podcast Mundioka o professor Gustavo Durão, do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociedade e Cultura da Universidade Estadual do Piauí (Uespi).
Apesar disso, o especialista afirma que há um movimento iniciado na Europa para a devolução das peças nos últimos anos. "Ainda é tímido, mas já começa a acontecer. Mesmo assim, ainda há dificuldade de parte dessas nações, principalmente França e Portugal, porque devolver esses objetos, para eles, significaria esquecer do seu passado histórico", conta.
Por fim, o especialista acredita que há uma resistência cultural muito forte no continente, diante da tentativa europeia de tentar apagar as próprias tradições diversificadas do povo africano. "As tradições orais são muito fortes em grande parte da África […], e a gente vê uma resistência muito forte por isso, por passar de geração para geração. É muito interessante perceber que, apesar de todas as atrocidades cometidas, a religiosidade ainda é muito forte e, também, a ideia de coletividade e união trabalhadas justamente nessa perspectiva de retomada."