FONTE: RFI
O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau afirmou na quinta-feira, 24 de Abril, que qualquer pessoa armada que tente desestabilizar o país será "eliminada".
O activista político guineense, Sumaila Djaló, lembra o envolvimento das Forças Armadas na Guiné-Bissau na invasão do Supremo Tribunal de Justiça e da Assembleia Nacional Popular, considerando as acções ilegais e contrárias à Constituição guineense.
RFI: Como interpretas estas declarações do General Biague Na N'tan sobre a eliminação de quem perturbar a ordem? Há riscos para os direitos humanos?
Sumaila Djaló: Os riscos sempre existiram e continuam a existir contra os direitos humanos na Guiné-Bissau, desde que Umaro Sissoco Embaló assumiu o poder unilateralmente em 2020. Essa posse, e os expedientes subsequentes contra a Constituição da República, tiveram a cobertura das Forças Armadas. Recordamo-nos do papel central dos militares na posse, por exemplo, de Nuno Nabiam, imediatamente após a posse de Umaro Sissoco Embaló, com forte apoio militar naquela altura, tanto por militares no activo como na reserva. Assim começou a cumplicidade entre as Forças Armadas e o poder actualmente instituído. As declarações do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Biague Na N'tan, revelam a continuidade da crescente militarização do poder na Guiné-Bissau. Não é a primeira vez que este chefe militar organiza espécies de conferências de imprensa com cariz político, ameaçando adversários políticos de Umaro Sissoco Embaló que, pela Constituição, não deveriam ser adversários dos militares, visto que estes estão impedidos de exercer actividade política. Essas declarações são dirigidas não só contra a oposição política, mas também contra cidadãos e movimentos não partidários que se opõem a este regime autoritário. Quando o Chefe do Estado-Maior fala de perturbadores que, mesmo presos, continuam a ameaçar a ordem pública insita-nos a recordar que houve uma alegada tentativa de golpe de Estado em 2022.
Em Fevereiro de 2022...
Exactamente. Cerca de 50 pessoas, entre civis e militares, foram detidas nessa altura. As detenções foram denunciadas pela Liga Guineense dos Direitos Humanos e pelos advogados das pessoas detidas como sendo ilegais. Três anos depois, essas pessoas continuam presas em Bissau, sem julgamento e sem liberdade, apesar do Tribunal Superior Militar ter determinado a sua libertação, por falta de provas. O que aconteceu foi que o Chefe do Estado-Maior mandou prender os juízes do Tribunal Superior Militar que emitiram esse acórdão. Portanto, é o próprio Chefe do Estado-Maior que impede a justiça militar de funcionar. Quem é, então, o verdadeiro perturbador da ordem pública é o próprio Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Há ainda outra questão importante: sempre que o Chefe do Estado-Maior vem a público com este tipo de declarações, que são verdadeiras declarações de guerra contra a oposição política e o povo guineense, fá-lo em momentos em que Umaro Sissoco Embaló está a atropelar gravemente a Constituição.
Que atropelos constitucionais estão a ocorrer agora?
Estamos a falar da detenção e perseguição do presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, entre outras violações graves das liberdades democráticas. Para além disso, o Presidente da República está fora do mandato constitucional de cinco anos. Devíamos ter realizado eleições legislativas e presidenciais, mas não houve eleições após a dissolução inconstitucional da Assembleia Nacional Popular. O Supremo Tribunal de Justiça também está sob ameaça de manipulação para a escolha do novo Presidente. A Comissão Nacional de Eleições encontra-se com a sua direcção caducada há mais de dois anos. Todas estas situações configuram um golpe constitucional liderado por Umaro Sissoco Embaló. As Forças Armadas, que deveriam defender a Constituição, estão, pelo contrário, a apoiar a ditadura de Sissoco Embaló, sufocando a oposição política e os direitos fundamentais do povo guineense.
Que impacto têm estas declarações do General Biague Na N'tan no ambiente político e social, a poucos meses de eleições?
É paradoxal porque, ao mesmo tempo que apela aos militares para se afastarem da política, ele está constantemente a fazer conferências de imprensa de caráter político, de caráter totalmente político. E o impacto disso é a construção de discursos que silenciem a oposição política legalmente constituída, mas também movimentos sociais e populares que têm lutado pela democracia e pelo resgate do caminho para a democratização na Guiné-Bissau. É também uma forma de condicionar o processo eleitoral que se avizinha porque o poder das armas, associado ao poder político ilegalmente detido neste momento por Umaro Sissoco Embaló, que é como ele mesmo se auto-intitula, o único chefe na Guiné-Bissau, é uma prova de todos os ingredientes à mistura para termos um processo eleitoral não pacífico, com riscos de não ser justo nem transparente, e a Guiné Bissau tero seu processo democrático, a piorar mais do que a destruição que essa democracia frágil enfrenta neste momento. Mais do que a ditadura que está consolidada, é preciso dizer isso de forma muito clara neste momento no nosso país. Nós estamos a falar de um país, infelizmente, com um histórico longo de golpes de Estado. Nunca houve na Guiné-Bissau um golpe de Estado levado a cabo por grupos armados fora das Forças Armadas, e quem tem responsabilidades de controlar as Forças Armadas é o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, não políticos da oposição, nem o povo desarmado. Portanto, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas deve preocupar-se, sim, com o facto de serem militares que conduziram o processo de invasão ao Supremo Tribunal de Justiça e a instituição de um Presidente à força, à margem da lei, e também com a invasão da Assembleia Nacional Popular, impedindo o funcionamento legal desse órgão, a mando de um poder político. Estas acções deveriam preocupar, sim, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, porque consubstanciam uma actuação das Forças Armadas contrária ao que a Constituição manda.
Que papel pode ter a comunidade internacional se continuar a haver sinais de pressão ou violações de direitos civis durante o período eleitoral?
Não há um período, na minha perspectiva, em que a comunidade internacional, através da sua intervenção na Guiné-Bissau, tenha manifestado clara cumplicidade com a destruição de instituições democráticas e a consolidação de um regime absolutamente autoritário. Tivemos o caso da CEDEAO, que não só admitiu Umaro Sissoco Embaló que já tinha comprovado, em dois anos, o seu autoritarismo, como também lhe permitiu presidir à cimeira dos chefes de Estado dessa organização. Mas, neste momento, temos a CPLP, outra instituição internacional da qual a Guiné-Bissau faz parte, a preparar-se para entregar a presidência da sua cimeira a Umaro Sissoco Embaló. Sem aprender com o grave erro cometido pela CEDEAO. Para além destas duas organizações, temos também uma indiferença total das Nações Unidas e da União Africana. Sabemos que, no quadro do entendimento com a organização sub-regional, é delegada a esta organização a responsabilidade de acompanhar os Estados-membros. Mas quando esta organização demonstra a incapacidade de ajudar a resolver problemas de ataque à democracia nesses Estados-membros, a ONU e a União Africana deveriam assumir as suas responsabilidades, e não o estão a fazer.
Por que motivo não o estão a fazer?
Há muitos interesses envolvidos. Não podemos esquecer que essas organizações têm no seu interior países com relações próximas com a Guiné-Bissau. E eu posso dar exemplos: países com relações históricas mais próximas com a Guiné-Bissau acabam por influenciar a actuação destas instituições internacionais. Um deles é Portugal, que, em termos de relação histórica com a Guiné-Bissau, tem um presidente da República que se mostrou cúmplice com a ditadura, e todos nós acompanhámos essa cumplicidade ao longo dos últimos anos. Outro exemplo é o Senegal que, apesar de ter mudado de poder, o Macky Sall, padrinho de Umaro Sissoco Embaló já não é Presidente da República, não tem tido, no quadro da CEDEAO, uma posição firme a favor da democratização no país vizinho, a Guiné-Bissau. Tanto que o novo Presidente deu sinais de estar aberto a uma relação com o ditador, apesar de o seu próprio poder ter nascido da luta contra uma ditadura no Senegal, nomeadamente quando convidou esse sujeito para participar nas comemorações da independência do Senegal, no passado dia 4 de Abril. Portanto, temos todas estas cumplicidades e todos estes interesses geopolíticos que condicionam o que tem acontecido na Guiné-Bissau. Eu não sou da opinião de que a comunidade internacional seja a principal responsável pelo que tem acontecido no nosso país são os principais responsáveis são os actores políticos internos e, neste momento em particular, o principal responsável é quem está à frente de um regime ditatorial; e esse tem nome: Umaro Sissoco Embaló.