segunda-feira, 16 de setembro de 2024

“A Guiné-Bissau continua a viver num clima de insegurança, tensão e caça aos partidos”

FONTE: RFI

Numa altura em que o presidente do Parlamento dissolvido da Guiné-Bissau, Domingos Simões Pereira, regressou ao país, lamentando a falta de segurança, e depois de o chefe de Estado ter admitido uma recandidatura, tentamos perceber como está o país. O investigador Rui Jorge Semedo não acredita na realização das legislativas em Novembro e diz que a Guiné-Bissau continua à espera da data das presidenciais. O analista avisa que se “continua a viver num clima de insegurança, tensão e caça aos partidos”.

Domingos Simões Pereira notou que é chegada a altura de as forças vivas se levantarem para tranquilizar o ambiente no país. O que significa este apelo? 


“Deve começar exactamente pelo assumir do compromisso por parte dos partidos políticos. Ele [Domingos Simões Pereira] lidera o maior partido político na Guiné-Bissau, que nunca chegou a fazer nada nesse sentido de se levantar para poder influenciar o retorno à normalidade constitucional e, consequentemente, à democracia. 

Portanto, essa responsabilidade de mobilizar as forças vivas deve começar pela estratégia dos partidos que devem assumir as suas responsabilidades. Aliás, a Guiné-Bissau chegou onde chegou pelas responsabilidades dos partidos, do próprio PAIGC que esteve no poder por um longo período na Guiné-Bissau e contribuiu para chegarmos ao actual estado de coisas que o país hoje vive. É verdade que a partir de 2000 para cá não foi exactamente o PAIGC, foi o PRS, depois o Madem que surgiu recentemente, e o APU-PDGB contribuíram para afundar o país. Esta responsabilidade cabe aos partidos, mas especialmente ao Domingos Simões Pereira e aos outros líderes partidários que devem influenciar as forças vivas para pressionarem o actual poder político que cumpra com os preceitos constitucionais. O mínimo que deve fazer é cumprir com os preceitos constitucionais, o que não está a acontecer há praticamente cinco anos. Há praticamente cinco anos o país colocou a Constituição de lado e estamos a ser dirigidos em função da vontade particular ou do Presidente da República ou de um grupo de pessoas que estão a ditar regras. É inconcebível pensar que, depois de praticamente nove meses da dissolução do Parlamento, o país não conseguiu realizar as eleições.”


A Guiné-Bissau tem eleições legislativas antecipadas marcadas para Novembro. O que esperar destas eleições? E para quando as presidenciais, uma vez que o mandato do Presidente vai terminar em Fevereiro e ainda não há data? 


“No Senegal, aqui ao lado, o Presidente dissolveu o Parlamento e no mesmo dia marcou a data para as eleições. Na Guiné-Bissau, dissolvemos o Parlamento em Dezembro passado e não marcámos. Eu não acredito que em Novembro teremos, na realidade, essas eleições.”


Acha que estas eleições legislativas não se vão cumprir em Novembro? 


“Exactamente. A dinâmica política não está a apontar para isso porque temos uma Comissão Nacional das Eleições caduca, que não transmite a credibilidade, a responsabilidade e até o profissionalismo. Temos o Supremo Tribunal de Justiça que tem como competência inscrever e admitir as candidaturas, mas o tribunal está decapitado. Só há uma pessoa que é vice, não é presidente, é vice-presidente e está a ditar as regras, demitir os juízes e fazer o que quer. Portanto, não há condições para a realização das eleições em Novembro. Isso do ponto de vista institucional. 

Agora, do ponto de vista da dinâmica ou das dinâmicas, percebe-se que não existe vontade alguma porque o actual poder político, neste momento, quer ainda controlar o ambiente político, sobretudo partidário. Se chegar à conclusão que tudo está sob controlo, obviamente que vamos avançar, mas se chegar à conclusão que ainda falta um trabalho de captura dos partidos, essas eleições não vão acontecer em Novembro.”


Este domingo, o Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, disse que está disponível para continuar a ser “Presidente da Guiné-Bissau”. Isto é um volte-face ao anúncio que fez na semana passada porque tinha dito que não se iria candidatar a um segundo mandato após acatar os conselhos da sua mulher. Como olhar para esta mudança de posição?


“Esse anúncio, na altura, era apenas para desviar aquilo que era a agenda do jornalistas do momento, que era debater o caso do avião estacionado no Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira. Então, todos os dirigentes atentos sabiam que aquele anúncio não era nada sério, não era realmente a intenção. Vendo tudo aquilo que o Presidente tem demonstrado ao longo deste processo, ninguém acreditaria que ele estava realmente a fazer uma comunicação com conteúdo real. Por isso, se disser que se vai recandidatar ou vai abandonar o poder, neste momento não achamos importante. O que achamos é permitir que as instituições funcionem. Depois, o povo guineense decide a quem confiar o Parlamento ou a Presidência da República nos próximos tempos.”


Mas o Presidente da Guiné-Bissau afirmou que não será "substituído nem por Nuno Nabiam, nem por Braima Camará, nem por Domingos Simões Pereira". Ele tem os poderes para decidir quem o vai substituir? 


“Num país normal, em condições normais, ninguém ousaria dizer isso porque o soberano é o povo. É exactamente nessa perspectiva que, já nesse dia, nós conseguimos perceber que a intenção dele é continuar no poder. Continuar no poder porque é inconcebível indicar quem o vai substituir, já que o país não pertence a ninguém, nem ao Presidente da República, nem ao chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, nem ao Domingos Simões Pereira, nem a ninguém. Cabe ao povo decidir, quando for chamado às urnas, para ver nesse momento quem lhe inspira maior confiança do ponto de vista daquilo que será a sua competência: ser Presidente, ser deputado…

Nós, nos últimos tempos, temos sido habituados a essa retórica. Antes foi o Presidente Jomav [José Mário Vaz] a dizer isso e agora é o Presidente Sissoco a utilizar a mesma retórica, o que demonstra a posição autoritária desses dois presidentes em dizer ou apontar que não serão determinadas pessoas a serem eleitas Presidente da República. É a população e os eleitores a tomarem essa decisão, não o Presidente ou quem quer que seja.”


A CEDEAO avisou que a Guiné-Bissau é o único país da organização “onde os estupefacientes não só provocam uma crise sanitária, como comprometem potencialmente a viabilidade do Estado” e diz que “o tráfico de droga é identificado como uma das principais ameaças à segurança da Guiné-Bissau, já que está associado a grupos criminosos organizados, à corrupção e à instabilidade política”. O facto de um avião ter aterrado no aeroporto de Bissau com 2,6 toneladas de cocaína, que imagem dá do país? 


“A própria CEDEAO tem contribuído - e muito - para o actual estado de coisas aqui na Guiné-Bissau. É verdade que nos outros países também houve apreensões desse género, agora, o que difere a Guiné-Bissau com esses países é que nesses outros países não é perceptível o envolvimento supostamente das autoridades e aqui na Guiné-Bissau é visível, tanto que já foram presas algumas personalidades públicas da Guiné-Bissau no exterior, incluindo militares e políticos, deputados que foram presos no exterior. Então é essa a mensagem que infelizmente, a Guiné-Bissau tem passado. Eu acho que, em parte, o que disse a CEDEAO não deixa de ser verdade, mas a CEDEAO não se pode colocar de lado porque contribuiu para essa instabilidade cíclica que a Guiné-Bissau está a viver por não ter respeitado e se demonstra desconhecedora também das leis da Guiné.  Isso percebe-se logo na última conferência de Chefe de Estado, realizada em Abuja, onde tiraram um comunicado que não reflete porque, em vez de pronunciar muito claramente, chamando a responsabilidade do Presidente para marcar ainda este ano as eleições presidenciais, no comunicado, está lá que a Guiné-Bissau deve ir para eleições legislativas, quando não é o que a Constituição prevê. Em relação a essas irresponsabilidades da CEDEAO, inclusive enviar uma força de estabilização sem um debate no Parlamento, sem mencionar outros casos de atrocidades do ponto de vista institucional que a CEDEAO tem cometido com a Guiné-Bissau, por isso, não tem autoridade moral e muito menos política para estar a emitir posicionamentos desse género porque também não tem contribuído para melhorar. Se a Guiné-Bissau se transformar ou se for capturada pelo crime organizado, sobretudo de tráfico de drogas, isso também influenciará negativamente a própria sub-região e a CEDEAO não tem visto, não tem compreendido todo esse aspecto. É por isso que hoje temos situações, por exemplo, no Mali, no Burkina Faso, no Níger e na Guiné-Conacri. Isso mostra que a CEDEAO não está em condições de jogar um papel estratégico de influenciar o funcionamento da democracia nos seus Estados-membros.” 


O que significa o silêncio das autoridades sobre o rumo que foi dado ou teria sido dado à droga?


“O que eu acabei de dizer: a diferença entre a Guiné e os outros Estados é que supostamente na Guiné tem o envolvimento das autoridades políticas e militares. Então, temos que trabalhar sobre esse aspecto, mas como é que vamos conseguir? Quando conseguirmos estabilizar o país. Portanto, é verdade que esta situação não é de hoje, já se arrasta de um tempo para cá, mas é necessário que aqui, internamente, façamos alguma coisa. Mas, também, a Guiné-Bissau não é uma ilha isolada do mundo, particularmente da comunidade à qual pertence que é a CEDEAO. A CEDEAO tem de ter um funcionamento claro e decisivo em relação à situação da Guiné-Bissau, quer política e quer em relação ao combate à droga porque o combate a droga não é uma luta que se faça de forma isolada. Por isso, a apreensão desse avião aconteceu em sinergia com os departamentos internacionais de luta contra a droga da Europa e dos Estados Unidos. Portanto, eu acho que é dessa forma que o país poderá reunir condições para lutar e combater os narcotraficantes. Temos que lutar para demonstrar ao mundo que a Guiné não é um narco-Estado, mas sim está a ser vítima por causa da fragilidade do Estado.”