sábado, 24 de agosto de 2024

Anatomia de um desaire anunciado

Por: Abdulai Silá

“É mais fácil sujeitar-se a um regime do que combatê-lo.”

Ernest Hemingway

In ‘Por quem os sinos dobram’

Que sentido faz falar-se de legalidade e legitimidade, por mais pertinente que seja, num contexto em que a própria Constituição do país é menos valorizada que o papel que alguns de nós usam depois de fazemos aquilo que se sabe que "selbst der Kaiser muss es selbst tun" [até o imperador tem que fazer por conta própria]? 

Deserdados

Este é um desabafo, aceitemo-lo assim, carregado de uma boa dose de desilusão (e outros desencantos), desferido à queima-roupa durante um sintadu recente, num início de tarde em que até a meteorologia parecia frustrada, convocando vadias nuvens a uma manifestação ruidosa e tumultuosa, transformando as ruas e os becos em leitos de riachos e lagoas de águas agitadas, cuja trajectória fazia lembrar as manobras de um kankuran tchaskiado. O mais relevante desse desabafo, todavia, não é o conteúdo em si, que em abono da verdade não constitui novidade nenhuma  para quem acompanha o quotidiano deste pedaço de terra que ainda se acha país, antes o facto de advir de um cidadão que dantes foi um apaixonado defensor da ideia de que a militância partidária era a única opção válida para todos quantos queriam ver consolidada a nossa “Nação africana forjada na luta”. 

Trata-se de um dos poucos amigos germanófonos que me restam, que depois de um distanciamento de mais de década e meia, forçado pelas opções feitas por ambos em termos de carreira profissional e outras de índole político-ideológica, o destino parecia querer reunir-nos novamente, revisitando as inolvidáveis aventuras dos tempos da adolescência e de estudante, profícuos em memórias. Juntos embarcámos na fascinante aventura da alfabetização de adultos; juntos fomos alunos-professores nas Brigadas Pedagógicas; juntos enfrentámos o desafio de domesticar o desconhecido; juntos partilhámos a crença nas virtudes da independência, nas promessas de “Paz e Progresso”. 

Apesar das desavenças que a partir de um determinado momento marcaram o nosso relacionamento, na realidade nunca deixei de gostar da sua companhia. E já vou explicar porquê.

“Mufunesa ka ta tindji”

Dotado de uma capacidade de oratória invejável, com um poder de persuasão pela palavra fora do comum, era sempre divertido ouvi-lo, partilhar momentos de bom humor. Mas também existia o consenso geral de que aturá-lo às vezes era uma tarefa fatigante, sobretudo quando procurava justificar as suas (des)venturas partidárias recorrendo a citações que de tanto uso e abuso se tornavam absolutamente fastidiosas, ridículas, enjoativas até. Nesse particular, lembro-me ainda de uma célebre frase de Martin Luther King com que ele frequentemente nos bombardeava, em que confessava que “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

Se no período da democracia revolucionária era fácil distinguir os que eram catalogados ou tidos como bons daqueles que eram tomados como maus, a era da democracia multipartidária complicou as coisas. E tanto assim foi que às tantas o meu amigo perdeu-se, mostrando-se incapaz de, entre outros exercícios típicos e recorrentes, fazer os rentáveis “desvios de procedimento” que quase todos os seus comparsas efectuavam sem pejo nem pudor. Tornou-se politicamente nómada, transitando de um partido para outro até não mais ter onde se kibinir. Sustentou e manipulou alas, promoveu intentonas, sufragou inventonas.

Sem nunca se encontrar uma explicação plausível, diz-se que foi paulatinamente perdendo traços característicos da sua personalidade, particularmente os seus dotes oratórios, o ímpeto de se engajar em debates políticos muitas vezes fúteis e, o que foi mais surpreendente, o interesse em cultivar certas relações e frequentar determinados círculos, o que em termos práticos se traduziu na perda irreversível dos couros, acabando por ficar sem nenhum.

O crepúsculo

Acumulando frustrações e desilusões, consta que rapidamente imergiu naquilo que as más línguas classificaram de crise existencial. E o que seria isso numa pessoa tão lúcida e indiscutivelmente tão articulada? Como que para arranjar evidências para rejeitar essa classificação, senti-me tentado a perguntar se ainda lhe causava tanta preocupação o silêncio dos bons perante a verborreia dos maus 

Não precisei de colocar a questão. O homem mostrou-me e deu-me a ler um acórdão emitido pela corte suprema. E antes de eu conseguir decifrar o que constava no documento, ditou a sentença: “acham-se doutores, esses imbecis, mas no nosso tempo, quem escrevia assim, com tantos erros gramaticais e de concordância, repara só nisto, olha aqui, não passava no exame do segundo grau. Um pesadelo é o que são mas é!”.

E logo a seguir, como que para elucidar a génese e a natureza do tal pesadelo, sacou da sua “mala diplomática” um documento de muitas páginas, com gráficos a cores e uma qualidade de impressão impecável. Exibiu-mo. Era um estudo sobre a situação na Educação. “Tu também foste professor, lembras-te? Então lê isto”, exigiu. Perante a minha relutância e manifesta falta de interesse, decidiu ele mesmo ler calmamente um troço, sublinhado a cores, e que terminava com esta frase: “os docentes não dominam o que ensinam às crianças, não conseguem responder a um quarto das questões de português e a cerca da metade das questões de matemática vindas do programa escolar dos seus alunos.

Não me era de todo estranha a precária situação prevalecente na Educação (a que alguém classificou de catástrofe nacional), nem tão-pouco a diskarna reinante no putrificado e totalmente desvirtuado sistema judicial, mas tive que reconhecer que aquela espontânea demonstração de eloquência pragmática bem podia ser manifestação de uma mudança significativa que estava acontecendo com o meu velho colega. Qual seria então a abrangência dessa mudança?, foi o que me apeteceu indagar. Mas, parecendo ler o meu pensamento, ele antecipou-se-me mais uma vez,questionando: “E no meio de tanta barbaridade, já entendeste quem são os maus, quem são as vítimas?”

Confesso que levei algum tempo até apreender o sentido e a razão da questão. Afinal, a classificação já não era entre maus e bons, estes tinham-se tornado simplesmente vítimas. E ele, pelo visto, devia ser uma delas.

Quer dizer então que na nossa Guiné extinguiu-se a categoria de cidadãos bons, os que a constituíam foram todos convertidos em vítimas. Maus e vítimas são então as únicas espécies sobreviventes. 

E talvez isso explique porque é que continua sendo válida a constatação de Hemingway, feita há quase um século, em como é mais fácil sujeitar-se a um regime do que combatê-lo.

É o desaire. E já estava anunciado.

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