terça-feira, 28 de maio de 2024

LUIS VAZ MARTINS: "Comunidade internacional é cúmplice com o que está a acontecer na Guiné-Bissau"

 FONTE: RFI

Os nove activistas detidos no passado dia 18 de Maio, durante o protesto da "Frente Popular», foram postos em liberdade nesta segunda-feira sob termo de identidade e residência, por ordem do Tribunal Regional de Bissau, depois de terem sido ouvidos durante mais de sete horas pelo Ministério Público. Luís Vaz Martins, advogado de defesa dos activistas, afirma que vão processar o Estado por sequestro e acusa a comunidade internacional de ser cúmplice com o está a acontecer na Guiné-Bissau.


Os nove actvistas foram colocados em liberdade, mas com medidas de coação. Que restrições são essas? 


Saíram com termo de Identidade e residência. Ou seja, se eles tiveram que mudar de morada, ou se tiverem de sair do país, têm de informar o Ministério Público. Todavia, a meu ver, a audiência no Ministério Público não fez sentido, uma vez que já existia uma decisão judicial, transitada em julgado, a ordenar a libertação [dos nove activistas]. Se alguém tinha de ser ouvido, devia ser o secretário de Estado de Ordem Pública e o ministro do Interior, por terem incorrido num crime de desobediência agravada, obstrução da actividade jurisdicional e sequestro. Tratou-se de mais uma técnica do regime para mostrar que, efectivamente, os nove actvivistas teriam estado numa situação de incumprimento de alguma lei, o que nunca aconteceu. Isto porque a liberdade de manifestação é uma liberdade consagrada na Constituição e não requer a autorização de quem quer que seja.


Mas de que é que são acusados estes activistas? Estas medidas de coacção baseiam-se em quê?


Ninguém entende as coisas deste país. Todo o mundo sabe que os tribunais também foram sequestrados pelo regime. Todavia, desta vez, o juiz teve coragem de fazer o que estava certo, decretando a libertação [dos nove actvistas]. E é nessa base que- com ordens vindas de fontes superiores- queriam fazer algum espectáculo em torno da coisa e foram inventar aquela audiência [no Ministério Público] que só acabou por volta das 18h00. São aqueles processos comprometidos para nunca andar, mas para mostrar a alguém que a privação de liberdade teria algum suporte legal.


O senhor lidera a equipe dos advogados de defesa dos activistas. O que é que vocês vão fazer?


Vamos acusar o Estado de crime de sequestro. Alguém tentou vender uma retórica em torno da detenção, mas aquilo que aconteceu não preenche nenhum dos requisitos para que se efectue uma detenção. Isto que significa que os 9 activistas foram privados da sua liberdade, durante dez dias, sem qualquer suporte legal e com a agravante de ter havido tortura. Eles foram severamente torturados. A privação de liberdade sem suporte legal é tortura. São crimes suportados pela agenda internacional, concretamente pela Organização Mundial Contra a Tortura. É nesta base que acreditamos que, sendo um crime contra a humanidade, devem ser responsabilizados [os autores destes crimes]. Independentemente de se entrar com uma queixa contra o Estado da Guiné-Bissau, os mandantes daquele acto de tortura devem ser responsabilizados. Estamos a trabalhar no sentido de cumprir essa agenda.


O Presidente Umaro Sissoko Embaló acusa os activistas de promoverem manifestações "encomendadas no país". Considera que existe a possibilidade de estar a haver ingerência externa no país?


Esta retórica já velha e já ninguém a compra. Umaro Sissoco Embaló não acredita que as pessoas possam pensar com as respectivas cabeças, que possam agir de forma livre. Esta situação não foi encomendada. Estamos a falar de uma iniciativa da sociedade civil, de cidadãos livres e conscientes, confrontadas que o assalto às instituições da República, mais concretamente o golpe de Estado institucional que se deu na Assembleia da República, com a agravante de já ter sido verificado também golpe no próprio Supremo Tribunal de Justiça. Hoje nós não temos um poder judicial independente. A esta situação junta-se os agravantes ligados à fome, à falta de assistência médica, ao não funcionamento do Serviço Nacional de Educação e o aumento do nível de vida de forma generalizada. Face a este contexto, tinha que haver algum momento em que o povo iria assumir o seu destino e foi o que aconteceu com a Frente Popular. Não há aqui qualquer possibilidade de alguém ter sido instrumentalizado. As pessoas ligadas à Frente Popular são cidadãos idóneos, que não podem ser conotados com qualquer tipo de instrumentalização.


Os activistas dizem que não cometeram quaisquer crimes. Dizem que vão continuar a luta pela liberdade e pela democracia no país. O Presidente guineense diz que não vai permitir a "desordem", nem que se façam "manifestações encomendadas no país". Há o risco da situação se poder vir a agravar?


Esse risco existe, mas acho que o Presidente já esticou demasiado a corda. A coisa já chegou a um nível que não creio que ele conseguirá- com essas ameaças- dissuadir os implicados nessa iniciativa. A tendência é de haver mais aderência porque os guineenses, de forma geral, não compactuam com a injustiça e tendem a posicionar-se do lado do mais fraco. O próprio Presidente sentiu que já não tem tantos apoios. É a primeira vez que fala da possibilidade de não ser eleito. O próprio discurso [de Umaro Sissoco Embaló] já está a mudar. Não se pode permitir que se atormente o povo. Não se pode permitir que qualquer voz dissidente, ou crítica do regime, seja vítima de algum tipo de atentado. E é o que se tem vivido aqui ao tentar amordaçar as liberdades. O direito à liberdade de manifestação, de expressão e de imprensa estão consagradas na Constituição da República da Guiné-Bissau e ele não pode tolher, a quem quer que seja, o exercício desses direitos. O Estado tem o seu alicerce baseado numa norma que é a Constituição da República da Guiné-Bissau- a nossa lei magna- a vontade de um Presidente da República, ou de qualquer titular de cargo de soberania, não pode suplantar a Constituição da República da Guiné-Bissau.


Falou-me de situações de repressão, de violência, de activistas espancados, torturados. Não receia que o contexto mundial actual contribua para que a comunidade internacional não olhe para o que se está a passar na Guiné-Bissau? Que se possam cometer outras situações ainda mais graves?


As coisas graves já estão a acontecer e a comunidade internacional tem sido cúmplice com a situação que se vive na Guiné-Bissau. A comunidade internacional tem estado a suportar um regime ditatorial e que açambarca todas as normas democráticas. Portugal olhou para o lado e fingiu que não estava a ver o que está a acontecer aqui no país. A própria Europa, que vende uma imagem de defensora da democracia, olha para o lado e finge que não vê nada. O Presidente da França, Emmanuel Macron, faz a mesma coisa. As pessoas estão a ser massacradas, as liberdades estão a ser restringidas e ninguém diz o que quer que seja. Nem a União Europeia, nem as Nações Unidas.


Que apelo faz à comunidade internacional?


Que assuma de forma coerente a posição que sempre tem assumido relativamente à situação de restrição das liberdades, à violação dos direitos humanos e ao não respeito das regras democráticas. A comunidade internacional, que inculca o modelo democrático que nós temos, deve ser pelo menos a ser solidária com aqueles que defendem o respeito pelas regras do jogo.

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