FONTE: RFI
A Liga Guineense dos Direitos organizou uma vigília esta quarta-feira, 3 de Abril, ao final do dia para denuncia o aumento de casos de feminicídio na Guiné-Bissau. A vigília teve por lema “Cinco minutos de silêncio, em homenagem às duas mulheres assassinadas na região de Gabú”. O presidente da Liga Guineense dos Direitos Humano, Bubacar Turé, denuncia a política de silenciamento do governo guineense.
RFI: A vigília acontece depois de terem sido registados dois crimes em duas semanas e depois de cinco mulheres terem sido mortas assassinadas em 2022. A Liga dos Direitos Humanos alerta para a necessidade de introduzir no Código Penal guineense o crime de feminicídio. É isso que está em causa hoje, alertar e denunciar estas situações?
Bubacar Turé: Sim, a vigília tem esse objectivo por um lado manifestar o nosso repúdio aos acontecimentos que tiveram lugar em Gabú, que consideramos actos criminosos, mas também foi uma oportunidade para alertar as autoridades nacionais sobre a urgente necessidade de agirem em várias dimensões. De um lado, reforçar o quadro jurídico nacional sobre esta matéria, que passa necessariamente pela criminalização do feminicídio. O homicídio é um crime na Guiné-Bissau, mas nós entendemos essa parte concreta de especificar a morte das mulheres. As mulheres são mortas só pelo facto de serem mulheres. E isso tem outros aspectos, outros detalhes que devem ser legislados. Por enquanto nós não temos isso, por isso é que nós avançámos com esta proposta ao governo. Entendemos que o governo da Guiné-Bissau não pode, de forma alguma, continuar com o comportamento de silêncio perante este tipo de actos; da rejeição e da condenação política e formal das autoridades nacionais. É preciso que o governo adopte estratégias holísticas abrangentes para combater estes tipos de fenómenos na sociedade. Não tem sido o caso. Temos vários documentos estratégicos que foram aprovados no passado, por exemplo, a política nacional da equidade e igualdade de género, mas que foram engavetados, nunca foram implementados, nem nunca foram mobilizados recursos para a implementação dessas estratégias que visam o fortalecimento da igualdade de género. A questão de equilíbrio em termos de relações de poderes entre homens e mulheres na sociedade guineense e também a própria violência baseada no género. Não há nenhuma estratégia nacional pública neste domínio. Portanto, tudo aquilo que tem sido feito nas mãos das organizações da sociedade civil, ou seja, o Estado renunciou à sua missão neste domínio, o que para nós é lamentável e inaceitável.
Fala de silenciamento. O que se sabe sobre estas duas mortes em Gabú e sobre a resposta por parte da Justiça guineense?
Sim, a primeira morte foi a uma senhora que foi violada sexualmente. De seguida, o violador, disparou mortalmente contra a vítima porque a vítima terá reconhecido e terá advertido que conhece a pessoa e vai denunciá-lo, em consequência, para evitar isso, ele disparou contra ela. As informações disponíveis são que este senhor já se encontra detido em Gabú. O segundo caso é o marido. Foi na sequência de uma violência doméstica em que ele esfaqueou mortalmente a esposa. As imagens que nós temos são muito, muito chocantes. É incrível que um ser humano, alguém no seu perfeito juízo, possa agir daquela forma como o homem agiu. As duas pessoas são distintas neste momento. O nosso problema não são as detenções porque as pessoas são sempre detidas quando há esses tipos de casos. O problema são os procedimentos, as tramitações processuais, que muitas vezes culminam com a impunidade. As pessoas são libertadas e nunca mais são julgadas e os casos ficam impunes. Nós denunciamos os cinco casos de 2022 em que, até hoje, não houve julgamento.
É preciso combater a impunidade na Guiné-Bissau e criar mecanismos para combater as práticas que denuncia?
Lamentavelmente, a impunidade é uma das maiores instituições na Guiné-Bissau, não só neste domínio, mas em vários outros na corrupção, nas violações graves de direitos humanos, atrocidades, atropelos à lei, à ordem jurídica, tudo isso são as situações que ficam impunes. Nós pensamos que para consolidar a paz, a democracia e o Estado de Direito, as instituições judiciais têm de funcionar. A Justiça é guardiã é o último reduto dos direitos humanos, quando se sintam lesados nos seus direitos e têm o único caminho a recorrer às instâncias judiciais. Se os tribunais não funcionam, se há essa impunidade generalizada no país, naturalmente não podemos falar de paz, muito menos de desenvolvimento. Nós entendemos que o governo, as autoridades nacionais, devem adoptar políticas públicas neste domínio, fortalecer as instituições judiciárias com meios e recursos humanos e também com a criação de instituições de avaliação e de fiscalização da actuação do sistema judiciário, permitindo o seu funcionamento eficaz, mas também o combate à impunidade passa necessariamente criação de estabelecimentos prisionais com padrões mínimos internacionais, o que não é o caso da Guiné-Bissau. O país possui apenas dois estabelecimentos prisionais e cada um desses estabelecimentos prisionais não tem capacidade para albergar 100 pessoas, o que é completamente incompreensível para um país que conta com cerca de 2 milhões de habitantes.
Ainda esta semana, a Liga chamou a atenção das autoridades para o aumento de situações de 'justiça privada'. O que é que significa justiça privada e como é que se pode explicar o aumento desta violência?
Nós temos constatado com este disfuncionamento dos tribunais, da Justiça em geral há uma quebra de confiança dos cidadãos em relação à justiça e, por conseguinte, as pessoas têm recorrido mais à justiça privada para fazerem valer os seus direitos. Nas últimas semanas registaram-se dois casos tristes: um aqui em Bissau, em que um cidadão suposto ladrão, foi amarrado, brutalmente espancado na sexta-feira da semana passada, brutalmente espancado até à morte. Temos neste momento um vídeo dramático que está a circular nas redes sociais em que, também na zona norte, um cidadão foi apanhado, um suposto ladrão e que as pessoas espancaram brutalmente de forma muito cruel. Essas pessoas não tiveram nem sequer o mérito de filmar aquilo e fazer circular isso nas redes sociais. Para nós são comportamentos inaceitáveis num Estado de Direito democrático, a realização da justiça é reservada aos tribunais, ao sistema judiciário. O cidadão comum não pode, sob pena de caos e desordem na sociedade, decidir fazer justiça com as suas próprias mãos. Por isso é que nós alertamos ao Estado para assumir as suas responsabilidades e, consequentemente, acabar com esta anarquia que a sociedade guineense está a encaminhar nos próximos tempos.